Lauro Cavalcanti
Em um gelado dia de inverno, os porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. (...) até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível.
(SCHOPENHAUER, 1851/2009, p. 665)
Quase Tudo, celebra 50 anos de trabalho corajoso, persistente e contínuo de Luiz Aquila. A sua obra é, acima de
tudo, fruto e celebração do ato de pintar. Um processo que se instaura criando um universo próprio que propõe uma constante dialética entre organização e soltura, compressão e tensão, fronteiras e invasões, paredes e pontes, ordem e anarquia.
O espectador encontrará, também, nas paredes de Quase Tudo, uma seleção de trechos de importantes historiadores da arte que, ao longo deste meio século, se debruçaram sobre sua obra, na qual se amalgamaram o seu trabalho autoral com a atuação institucional que assegurou a continuidade da Escola de Artes Visuais. Como sabemos, o curso livre do Parque Lage alavancou uma nova geração e alçou a própria profissão de artista como uma ocupação respeitável no final da década de 80. Em 1985 e1987, respectivamente, Frederico de Morais*1 chamou-o de herói da própr
ia pintura, enquanto Wilson Coutinho*2 registrou que "Aquila ofertou para a sua geração - que é a minha - o presente da pintura: o presente como uma oferenda e como tempo."Casimiro Xavier*3 assinala que, no início dos anos 70, quando Luiz Aquila começou a definir a sua pintura, " o olhar brasileiro já perdera a referência de cultivar uma pintura de qualidade - onde não é o primeiro impacto visual que conta, onde é preciso descobrir a grafia e a qualidade da pincelada, da matéria e da textura do quadro."
Suas telas não preenchem uma ordem previamente estabelecida: os gestos, conflitos e aproximações formais aparecem como registro do percurso e razão de sua materialidade final. Nelas, o andaime inúmeras
vezes contraria a construção. É um trabalho que rejeita antagonismos fáceis e não afirma sua singularidade excluindo outras possibilidades da arte brasileira no caminho fácil e corrente do narcisismo das pequenas diferenças. Fascina-lhe a simultaneidade que vários processos, por vezes inconciliáveis em suas fontes, chegam ao Brasil. Cita os exemplos de Iberê Camargo – soulagiano e giacomettiano a um só tempo – e Burle Marx – influenciado, concomitantemente, por Arp e Picasso. Tal liberdade de assimilação e reinterpretação, a partir de entendimentos diversos, confere, segundo ele, um caráter próprio, forte e original à arte nacional. Característica presente em seu trabalho individual, como assinalou Frederico de Morais*4:
" Luiz Aquila sempre foi atraído pela tensão entre contrários. Já em seu período de formação, sentia-se dividido entre o universo expressionista de Goeldi e a economia expressiva de Aluísio Carvão, entre este artista neoconcreto, que preconizava a autonomia da cor, e a elegância linear, um tanto aristocrática de Wesley Duke Lee."
A vibração das cores e o movimento de seus percursos não se limitam às fronteiras físicas da obra e transbordam para as superfícies das paredes que as contém. Como bem situou Lelia Coelho Frota*5,"
A cor é agora rio, travessia que flui, de maneira a um tempo livre e organizada (...) um valor que, interando-se com outros a partir de um primeiro acorde, cria o estado de receptividade que nos permitirá participar gradualmente do ritmo que vai construindo, mancha a mancha."
Aquila subscreve à pintura solidária da arte moderna, à escrita automática dos surrealistas, ao mesmo tempo que professa um distanciamento e ceticismo contemporâneos.Os gestos, a um só tempo, previstos e inesperados, delimitam e ultrapassam regiões nas superfícies da tela, do papel ou da madeira. É um modernismo sem rigor, projeto, nem exclusões ou aversões mal disfarçadas. Dos desenhos iniciais de a
prendiz em Brasília, Paris, Londres, Lisboa e Évora às suas telas contemporâneas, a expressão de sua linguagem sempre conviveu com movimentos diversos que jamais foram tomados como exortações a modificá-la. Suas telas, com títulos iniciados com as palavras “A Pintura”, são unidades de uma obra maior, em permanente construção, correspondente visual ao conceito da Never Ending Tour do poeta e músico Bob Dylan.
Antes que este escrito se alongue demais, deixemos cada um se deleitar com os trabalhos de Luiz Aquila, adicionando, ao lado dos artistas, os espectadores como sujeitos da sensata equação de Casimiro Xavier de Mendonça*6: "afinal são os artistas e não as exposições de curadores que fazem a arte…"
Temos certeza que os espectadores compartilharão, com Eudoro de Sousa*7, "uma impressão mais forte: a de estar diante de uma pintura que rejeita o empenho catalográfico. Sem adjetivo(...)" E concordarão com o próprio Aquila*8: "parece um lugar-comum falar em necessidade da arte, mas esta necessidade existe. Lugar-comum maior é falar em inutilidade da arte – como o sistema faz, todos os dias, na prática."
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