São Paulo vibra com as cores de Aquila
A partir de amanhã, a cidade lembra os 50 anos do pintor Luiz Aquila, chamado de “pai da Geração de 80”, com o maior conjunto de exposições de sua carreira
Em 1986 um jornalista chamou Luiz Aquila de “pai da Geração 80”, e a fórmula pegou. O pintor carioca (que está completando 50 anos neste momento em que faz em São Paulo o maior conjunto de exposições de sua carreira) se declara “envaidecido” com o título, mas o acha descabido. “A Geração 80 não tem pai. Teve sim, a sorte de encontrar um jovem crítico, Marcus de Lontra Costa, que lhe abriu as portas da Escola de Artes Visuais do Parque Lage para realizar uma exposição que marcou época”. É verdade. Mas não é menos verdade que toda a vigorosa jovem pintura brasileira que explodiu nos anos 80 foi feita por ex-alunos de Aquila, que, de 79 a 86, ensinou na mesma Escola.
Tanto histórica quanto esteticamente, é esse o seu grande trunfo: a pintura. Foi sempre e essencialmente um pintor, um resistente, remando contra a maré numa época em que as telas, as tintas, o cavalete, e o fazer artesanal estavam em baixa. No Brasil quase só se falava (com o ligeiro atraso costumeiro) de arte conceitual, e Aquila amargou por algum tempo sua fidelidade às origens e o não ter conseguido aderir à moda. Aliás, ainda hoje, consagrado até um pouco prematuramente, e vendendo obras por preços que vão de US$ 4.000 a US$ 8.000, ele encontra resistências junto a certas elites muito intelectualizadas, por fazer um trabalho mais emocional e intuitivo que cerebral e arrogante.
Aquila é filho de um arquiteto ilustre, Alcides da Rocha Miranda, e conviveu desde muito cedo com a pintura moderna “clássica” (salvo o paradoxo entre os termos) – a que inclui Matisse, Kandinsky, Picasso e Klee, por exemplo. Foram esses os parâmetros de sua formação e de seu crescimento interior. “Assim como a gente diz ‘de cabeça feita’, posso dizer que saí de ‘olho feito’ do Brasil, quando, na década de 60, morei por alguns anos na Europa”, garante. Primeiro, na França, onde se viviam, na época, os últimos estertores de uma pintura abstrata tachista que Aquila descreve como “macerada”. Depois, na Inglaterra, em pleno florescimento da pop art, com o ímpeto e o vigor de suas cores. “Minha primeira lembrança inglesa é uma exposição de escultura minimalista tipo Anthony Caro, tudo muito colorido, mas de contornos límpidos e nítidos, instalada num parque romântico e verde.” A lembrança é importante porque até hoje há muito na pintura de Aquila que poderia parecer com uma foto desfocada dessas peças no jardim: geometria recortada, ziguezagueante, vibrante, em planos fragmentados, contra fundos ondulantes com suaves movimentos orgânicos.
Aquila faz questão de se definir como um pintor abstrato, sobretudo diante da insistência de alguns observadores em encontrar vestígios de figuração em seu trabalho. “Ser figurativo é uma atitude, é ter uma intenção de se referir ao real, o que, em definitivo, não me ocorre”. Mas mesmo que não intencionais, certas analogias subsistem. É quase impossível não enxergar, aqui e ali, ou num detalhe de um quadro, a sugestão de uma paisagem reduzida ao essencial, ou os elementos de uma quase natureza-morta cubista. O que se explica, mais uma vez, pelas raízes: o olhar de Aquila foi modelado pela geração que passou da figuração à abstração. Seus ascendentes em pintura são Matisse e Kandinsky, bisavós dos quais herdou muito mais que de ancestrais recentes.
Isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que Luiz Aquila não seja um artista de seu tempo. Sua gestualidade é dos anos 70, os de sua maturação como pintor, e sua proposta é, visível e exclusivamente, produzir um acontecimento de pintura sobre o quadro. Nas telas de grandes formatos (17 agora expostas no MAC do Ibirapuera), o acontecimento é grandiloquente e corajoso: “Agradam-me a façanha, a exaltação, a liberdade”. No pólo oposto, ficam desenhos em pastel de cerca de 60 x 40cm, que Aquila mostra pela primeira vez em São Paulo. São de uma qualidade surpreendente, embora não inesperada: reflexivos, intimistas, espontâneos, seguros, absolutamente coerentes com o suporte e a escala, mas, também, com o conjunto da produção.
Além dos desenhos recentes e das grandes pinturas, há mais duas exposições, uma pequena retrospectiva de obras sobre papel e uma de pinturas de cavalete entre 1 e 2 metros quadrados.
Nunca Aquila se permitiu, antes, um exame tão abrangente. Curiosamente, do conjunto se despreende, junto com uma sensação de alegria, a de uma arte que deseja e sabe ser ornamental e acolhedora, no sentido mais nobre de ambas as palavras. A idéia não agrada muito ao artista. Confrontado com a famosa frase de Matisse, que dizia querer fazer uma pintura que fosse como uma poltrona, um momento de repouso e reconforto no fim de uma jornada de trabalho, Aquila contesta: “Acho que há uma espécie de inocência modernista nessa frase, típica de uma época de crença num futuro melhor para o homem”.
Mas mesmo com a desaprovação de Luiz Aquila, seja dito: suas obras são mais gratificantes que dramáticas, e as situações de confronto ou anarquia que insere nelas (contrariando deliberadamente a ordem, por exemplo, quando ela lhe parece excessiva) não indicam conflito ou tensão. Submetem-se à harmonia de quem está de bem com a sua criação e com a vida.
Olívio Tavares de Araújo Estadão, 15 de março de 1993
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