As pinturas recentes de Luiz Áquila, em uma passagem pelo azul, anunciam formas – colunas, nuvens, ondas, grades – logo desestabilizadas por planos irregulares, traçados desalinhados e torções em fuga. Nesses trabalhos, em que intensidades de cor disputam espaço na tela, o artista acolhe pausas luminosas, densas formações do branco, clareiras. Ao aproximá-las de dese
nhos de 1979 em que também os azuis reverberam, essa exposição traça um arco de ligação, que reafirma a convivência tensa entre desenho e pintura em sua investigação dos limites do quadro. A aventura poética de Luiz Áquila transcorre, em grande medida, no desafio a esses limites. O quadro é como um território a ser explorado. Em seu interior se abre um espaço potente, que tudo pode ser (pois nada ainda é). Há uma tentativa de conduzir o fluxo imaginário de uma grande tela em expansão às bordas desse campo, que, tal como um visor, captura rastros de uma constelação de possibilidades da imagem.
Como grande parte dos títulos atribuídos pelo artista, as telas aqui apresentadas incluem a sequencia de palavras “a pintura e”. Desde A pintura e o primeiro quadro do ano, há na compo
sição frequentes atravessamentos de elementos verticais em trabalhos de formato horizontal. É o que acontece em A pintura e a catedral submersa, quando remetem a colunas ascendentes, sem descrevê-las. A afirmação e o desafio à arquitetura do quadro, sua estrutura retangular e delimitada, constitui um núcleo central de pinturas e desenhos. Mas, em A pintura vertical e o azul a própria tela estreita assume o movimento de ascensão. Pinceladas contínuas e est
icadas traçam linhas sinuosas, que muitas vezes se repetem, como nervuras onduladas. Já nos desenhos, rabiscos em nanquim repetidos sobre o papel competem com aguadas de guache. Criam padrões que por vezes replicam o caráter angular da folha. O agudo do traço e a liquidez da tinta reivindicam a superfície do papel. A planura da cor aberta com rolo de espuma é perturbada por solos de pincel fino ou pela passagem da trincha decidida e desestabilizadora.
Suas composições abrem movimentos complementares. Mobilizam os meios próprios da pintura para demonstrar sua potência expressiva na ausência da representação (que continua a tradição de Kandinsky, e intercepta alguns azuis de Soulages). Por outro lado, desenvolvem uma engenharia lúdica de montagem de fragmentos que estabelece vínculos entre a imprevisibilidade dos ac
ontecimentos plásticos e a das negociações subjacentes ao jogo social. Riscados, pontilhados, fragmentos de linha, sugerem, grafias criptografadas (prática comum no fluxo de comunicação e de informação), que registrariam tramas, pequenas batalhas, negociações cotidianas, discretamente compartilhadas nessas cifras. A colagem de fragmentos de páginas de jornal, em A pintura entre soluções, introduz um laço físico com o lado de fora, que inversamente ao projeto mais imediato de trazer o mundo para dentro, requalifica a escrita do noticiário como passageira, provisória prestes a ser arrastada por outras densidades, riscos e impregnações da cor. A imagem verbal e a visual se contaminam. A escritura constrói pontes entre dois vazios, a tela em branco e o que escapa aos sentidos naquilo que vemos fora dela (o que passa pelo quadro, mas, falta à visão). A prática do artista no ateliê é tomada como exercício de condução de inte
nsidades emocionais, de manipulação do acaso e de reconfiguração incessante do informe sem a pretensão de conquistar o pleno domínio da forma. Luiz Áquila aceita o imprevisto, o acidental, o desalinhado como instância possível do viver. O quadro, talvez, sustente uma resolução temporária de conflitos, que se abre ao improviso com seu dinamismo desestruturante e rápido. É ao mesmo tempo constatação e projeto.
Luiza Interlenghi, 2016
Comments